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O velho e o novo

O velho e o novo

No Boletim da semana, uma reflexão constante se repete: a ética do caminhante.

A Bioética tem o desafio de caminhar, ao lado da ciência e da moral, por caminhos que ainda não foram traçados nem percorridos - como no poema de Antônio Machado, se faz o caminho ao caminhar.

E, mesmo com tanta novidade para se ocupar, seguimos com problemas históricos (e insolúveis). Por exemplo, enquanto discutimos a ética de eliminar a mutação do gene TMCL (responsável pela perda progressiva da audição em mamíferose) e pais surdos desejam, deliberadamente, incluir esse mesmo gene em seus embriões para que seus filhos compartilhem de sua experiência - uma complexa questão de engenharia genética e autonomia no planejamento familiar - , tropeçamos em notícias de eugenia, alocação de recursos escassos, fome...

Ainda que as informações em saúde dobrem a cada 73 dias, as informações e os problemas do passado são mais contemporâneos do que nunca. O Boletim dessa semana demonstra um pouco disso. São notícias que estavam no passado e ainda estão entre nós. E tudo isso com uma pitada de tecnologia.

Ao escrever o Boletim, lembrei-me de uma história. Depois de contar uma metáfora sobre o joio e o trigo para explicar o livro mais difícil da Bíblia, o Apocalipse, um famoso ativista dos direitos humanos perguntou à plateia: Entenderam agora? “Sim, Jesus”. E ele saiu dali falando aos seus orientandos: “a sabedoria está em tirar tesouros das coisas novas e velhas” (Mt, 13:52).

Tirar tesouros das coisas novas e velhas. Uma lição de bioética que permanece.

Boa leitura


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A última moda

Historicamente, a política impacta a saúde. Isso não é novo. O que é novo é a forma de impactar. Vereadores resolveram que é sinal de trabalho do legislativo entrar em ambientes hospitalares filmando para "fiscalizar" o trabalho das equipes de saúde.

No caso mais recente, um iluminado legislador invadiu a Sala Vermelha (espaço destinado a pacientes com risco de morte) para fiscalizar e, sem qualquer cuidado com o impacto ao cuidado intensivo, riscos de infecção a pacientes e afins, começou a debater com a equipe.

Um paciente faleceu. Fiscalizar não é interferir.

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Copia mas não faz igual

E Milei anunciou que a Argentina sairá da OMS, assim como dias antes o presidente norte-americano havia feito. Só os fundamentos de cada qual foram quase diferentes.

Milei alegou que retirou a participação da Argentina na OMS por conta de “diferenças sobre a gestão sanitária”, e que a Argentina não vai permitir que uma organização internacional intervenha na soberania do país e muito menos na saúde.

Essa discussão não é nova, mas já é superada há decadas. Especialmente porque vírus e doenças não conhecem fronteiras, soberanias e outras ficções humanas, apenas o ser humano. E, por isso mesmo, há uma complexa administração sanitária global que envolve, inclusive, novas releituras de conceitos como soberania e poder - aliás, um pequeno jabá, estou finalizando um livro sobre isso, em breve conto mais.

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Trump suspende recursos para tratamentos (Parte 1)

Presidente Donald Trump determinou a suspensão dos fomentos norte-americanos a fundos de cuidados em saúde global. Em especial, isso afeta os recursos que estavam sendo destinados à eliminação do vírus da pólio dos dois últimos países que possuem a pólio endêmica, Paquistão e Afeganistão. Com isso, a OMS alertou para o risco de retrocesso histórico, podendo a pólio voltar a se espalhar e afetar milhares de crianças ao redor do mundo.


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Trump suspende recursos para tratamentos (Parte 2)

O presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva retirando financiamento federal para cuidados de saúde de afirmação de gênero destinados a jovens trans. Poderia ser uma notícia do passado em que não se compreendia a abordagem médica da disforia de gênero, mas é uma notícia da semana.

A medida proíbe o uso de bloqueadores de puberdade, hormônios e cirurgias para adolescentes trans, e até penalizar profissionais de saúde que forneçam esse cuidado, equiparando-os a “mutilação genital”. Organizações de direitos humanos alertam que a ordem força jovens trans, suas famílias e médicos a escolhas “impossíveis” – arriscar consequências legais para obter ou oferecer tratamento, ou então sofrer em silêncio sem assistência.

Um dado importante para compreender os impactos: jovens trans ou em questionamento de seu gênero representam um grupo expressivo dentre as pessoas que tentaram ou cometeram suicídio nos EUA. Um estudo publicado pelo Journal of the American Medical Association (JAMA) descreveu que a abordagem (que agora foi banida) possibilitou a redução de 73% dos índices de tentativa de suicídio [HO2] no grupo que foi acolhido pela abordagem por ao menos 12 meses.


Antiqua et Nova

O Vaticano divulgou o documento “Antiqua et Nova”, com diretrizes éticas para o uso da inteligência artificial, abordando desde educação e economia até relações internacionais e saúde, e você pode ler aqui.

No setor de saúde, o texto reconhece o potencial da IA em melhorar diagnósticos e cuidados, mas adverte que ela deve servir apenas como complemento à inteligência humana, nunca a substituir. Decisões sobre tratamentos e a responsabilidade pelos pacientes “devem sempre permanecer com a pessoa humana” – não podem ser delegadas a algoritmos.

O documento também alerta para riscos como discriminação e perda de empatia, afirmando que “nenhuma máquina deveria jamais escolher tirar a vida de um ser humano”.


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Nova et Antiqua

Foi apresentado no Congresso americano o projeto de lei Healthy Technology Act of 2025, que permite qualificar sistemas de IA como “prescritores” médicos em certas condições. O projeto de lei emenda a lei federal de alimentos e medicamentos para que uma IA aprovada pela FDA e autorizada em determinado estado possa prescrever medicamentos aos pacientes. Você pode ler o PL aqui.

A iniciativa representa um passo significativo para integrar a IA na prática médica, possivelmente transformando como receitas são emitidas e monitoradas. Todavia, as opiniões se divergem sobre a questão. Apoiadores argumentam que a IA poderia reduzir erros, aumentar a eficiência e personalizar tratamentos, além de aliviar a sobrecarga dos médicos, enquanto críticos alertam para a perda do julgamento humano nas decisões, riscos à privacidade de dados e viés algorítmico que poderia perpetuar desigualdades existentes.

Se aprovada, a lei será um importante precedente mundial na incorporação de IA ao ato médico, exigindo novos padrões de governança ética, validação de segurança e supervisão contínua para garantir que a tecnologia melhore – e não prejudique – o cuidado.


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Tráfico de pessoas na cadeia de suprimentos de saúde

Especialistas em bioética e saúde pública chamaram atenção para o uso de trabalho forçado na cadeia de suprimentos médicos, um problema muitas vezes despercebido por organizações de saúde. Hospitais e clínicas podem, sem saber, estar comprando produtos (como luvas, equipamentos de proteção ou medicamentos) fabricados por vítimas de tráfico humano ou trabalho escravo, o que configura uma grave questão ética de direitos humanos na saúde. Relatos destacam que mesmo grandes fornecedores globais já foram flagrados utilizando trabalho forçado (por exemplo, em fábricas de luvas na Malásia).


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Por fim
  • O aniversário do editor está chegando, e você pode indicar este Boletim a outras pessoas como presente de aniversário.
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