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O século do biopopulismo

O século do biopopulismo
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A notícia é de agosto de 2025, mas poderia facilmente ser de 1925. Ela relata a nova obsessão do Vale do Silício: gerar bebês mais inteligentes. Para isso, recorrem a serviços de testes genéticos que prometem avaliar o QI dos embriões pagando a bagatela de US$ 50 mil (ou, cerca de R$ 280.000,00). Também proliferam serviços de intermediação conjugal (casamenteiros profissionais, em bom português) para unir executivos de tecnologia “a parceiros brilhantes, para obter filhos brilhantes”, de preferência oriundos da Ivy League – serviço que custa a bagatela de US$ 500.000,00 [1].

Não é exatamente novidade. A notícia é, antes, uma releitura de história e de ficção científica. Em Gattaca (1997), por exemplo, apresenta-se uma sociedade distópica em que a posição social é determinada pelas características genéticas – crença que saiu das telas para o Vale do Silício, onde muitos acreditam que bons genes levam a uma “inteligência superior”, e que é essa inteligência superior genética a responsável pelo sucesso social e financeiro dos executivos da tecnologia.

Gattaca: A Experiência Genética (1997) - IMDb

Este texto é, portanto, uma brevíssima biografia do último século do biopopulismo.

Quero ficar apenas no último século, ainda que seja possível encontrar sinais rudimentares dessa euforia antes disso. No Séc. XVII, Buffon já defendia concepções de hierarquia racial e social, promovendo uma “teoria das degenerações”. Segundo ele, a geobiologia humana se degenerava à medida que o ser humano migrava pelo planeta e se aproximava do polo ou da linha do equador – ou, na releitura de Chico, “não existe pecado do lado de baixo do equador”.

A ideia mais elaborada de uma transmissão hereditária de inteligência e talentos especiais é do Séc. XIX, quando Francis Galton publicou, em 1865, sua obra Hereditary Talent and Character [2]. Quatro anos depois, Galton reforçou os princípios de sua ideia na obra Hereditary Genius. Nela, desenvolveu a teoria eugênica e a distribuição do talento da população. A partir disso, passou a promover campanhas pelos casamentos entre pessoas que considerava como “superiores”.

Francis Galton - Linda Hall Library

Em 1891, em um congresso dito “científico”, Galton apregoou pela necessidade de melhorar a raça, em especial nos locais de colonizações e nos países tropicais, evitando-se inclusive a miscigenação. Sua influência levou à criação do “Laboratório Galton para Eugenia Nacional”. Por eugenia nacional, entendia-se como “estudo dos meios que estão sob o controle social, que possam beneficiar ou prejudicar as qualidades raciais das gerações futuras, tanto física como moralmente”[3]. A ciência, aqui, funcionava como verniz racionalizado e técnico, para mascarar o caráter ideológico e político das propostas.

Essas ideias atravessaram o Atlântico e foram semeadas nos Estados Unidos, em especial pelo biólogo Charles Dabenport, criando-se a primeira sociedade eugênica norte-americana em 1903. E foi o terreno adequado para que tais ideias ganhassem estrutura política e fossem desenvolvidas e institucionalizadas.

A eugenia elaborada por Galton passou a ser chamada de eugenia positiva, ou ainda eugenia clássica. Seu objetivo era aumentar a taxa de nascimento de seres humanos considerados melhores e superiores, estimulando-se casamentos entre pessoais com caracteres considerados superiores. Eis o elo direto com o Vale do Silício atual: a crença em uma genética da inteligência não é nada nova.

Ao lado dela surgiu a eugenia negativa. A primeira vez que se desenvolveu tais termos foi na obra de C. W. Salleby, na sua obra Parenthood and Race Culture [4], publicada em 1909. O médico defendia que a inferioridade também é hereditária, e que seria necessário se livrar de tal inferioridade por meio de métodos como a esterilização, ainda que não consentida, por meio de licenças para a realização de casamentos, restrição da imigração, dentre outros meios, incluindo práticas como o infanticídio e o aborto eugênico.

É inevitável a associação com o nazismo. Mas eis algo relevante: muitas ideias implementadas pelo Nazismo foram, antes, inspiradas em legislações eugênicas adotadas pelos EUA. É verdade que uma lamentável efeméride coincide com as ideias do Vale do Silício: os cem anos da publicação da obra de Adolf Hitler (“Minha luta”, 1925) apropriando-se da doutrina da eugenia para aplicá-la em prol da superioridade da ideia que ele desenvolvia de “raça ariana”. O nazismo transformou-se, assim, em uma “biologia aplicada”, expressão usada por Rudolf Hess, médico próximo ao ditador.

Mein Kampf': livro escrito por Hitler em 1925 já trazia ideias nazistas |  Acervo

Como se pode observar, a ciência tem sido apropriada e utilizada sistematicamente, no último século, para embasar narrativas políticas e sociais das mais diversas. Esse fenômeno, que durante a Pandemia de Covid-19 denominei de biopopulismo, consiste no uso político de narrativas científicas e de temas de saúde pública para fins demagógicos, valendo-se da democracia para ir contra ela própria. [5]

Em essência, o biopopulismo envolve a apropriação do discurso científico e biomédico por líderes ou regimes populistas de modo a mobilizar apoios, justificar políticas autoritárias e até excluir determinados grupos, muitas vezes sob o pretexto de proteção da saúde do “povo”, de modo a legitimar agendas políticas que, em última instância, minam princípios democráticos e direitos fundamentais.

biopopulismo não implica num compromisso genuíno com o método científico ou com a verdade, mas sim um uso cínico da autoridade da ciência para ganhar adesão popular. Basta que certas afirmações soem verossímeis ou tenham um verniz “científico” para serem úteis ao populista, mesmo que careçam de comprovação real. Claro que isso, nos tempos em que vivemos, é ainda mais potencializado pelo contexto da “pós-verdade” e disseminação de fake news, pois se trata de um ambiente em que não importa se a referência científica ou biomédica empregada pelo líder populista é verdadeira; importa apenas que pareça plausível o suficiente para convencer parte do público.

Já escrevi em outros espaços sobre o biopopulismo na pandemia, e não pretendo ser repetitivo. Mas, para demonstrar que, em 2025, ainda há biopopulismo, quero comentar sobre Robert Kennedy Jr., atual Secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos e declarado antivax.

Where Robert F. Kennedy Jr. Delivers His Fringe Views: Not on the Trail -  The New York Times

Entre as pautas que defende por meio de sua organização, a Children's Health Defense, está a alegação de que vacinas causam autismo, ou ainda que um determinado herbicida é responsável pelo aumento de pessoas que se declaram transgêneras. E palavras possuem impacto. Desde que tais ideias começaram a circular (em especial a de que vacinas infantis são a causa do autismo), a taxa de vacinação infantil caiu muito abaixo das metas de vacinação necessária para evitar o surgimento de doenças como a pólio [6].

Em comunidades que possuem frágeis sistemas de verificação de informação, o firehosing tem potenciais nocivos na saúde pública. É o caso do surto de sarampo em Samoa, em 2019. Samoa é uma ilha no Pacífico com cerca de 200 mil habitantes, perto das ilhas Fiji, no nordeste da Austrália e norte de Nova Zelândia. Robert Kennedy Jr. visitou a ilha em 2019 e, junto de sua organização, divulgou os supostos efeitos nocivos da vacina em crianças, fazendo a taxa de vacinação cair para 31%, muito menor que países insulares vizinhos, como as vizinhas Nauru, Niue e Ilhas Cook, que tinham 99% de taxa de vacinação [7]. Com isso, mais de 5.700 casos de sarampo e 83 mortes – números altos, pensando na população total do país.

Minha preocupação com o biopopulismo é que ele não soa biopopulismo. Soa como ciência aplicada e benéfica à sociedade. E, sem maiores cuidados críticos, tais ideias podem fundamentar decisões pessoais, políticas públicas e até mesmo decisões judiciais de Cortes Constitucionais – como foi o caso Buck v. Bell, 274 U.S. 200, 207 (1927), nos EUA. A euforia genética, em particular, ressurge não apenas como utopia de aprimoramento humano, mas ancorada em técnicas já disponíveis. Não é mais ficção: é biotecnologia em operação.

Hoje, por exemplo, kits de edição genética com a tecnologia Crispr-Cas9 podem ser adquiridos no eBay por um bocado de dólares para “brincar” de edição genética na cozinha de casa. Há vídeos no TikTok ensinando a usar o kit para produzir salamandras que brilham no escuro à supostas modificações que propiciam maior produção de músculos em animais e humanos – quem nunca sonhou em ir à academia uma vez por mês e ter os resultados de quem a frequenta diariamente?

No Brasil, ainda não se recorre à Crispr-Cas9 para produzir filhos mais inteligentes. Mas já existem práticas que exploram o mesmo imaginário. É o caso da prática de “soroterapia” em gestantes, oferecida como um método para que seus filhos nasçam mais inteligentes. É o caso da médica que aplicava em si um “protocolo” que ela própria desenvolveu para “turbinar” o QI de bebês na gestação, com a promessa de também reduzir o risco de autismo e promover o desenvolvimento neurológico acima da média [8].

E, assim, o biopopulismo se espalha como uma praga: de post em post, de crença em crença, de política em política, até normalizar falsas verdades científicas contrárias a direitos fundamentais.


[1] Inside Silicon Valley’s Growing Obsession With Having Smarter Babies. The Wall Street Journal. Disponível em: https://www.wsj.com/us-news/silicon-valley-high-iq-children-764234f8

[2] GALTON, Francis. Hereditary Talent and Character. MacMillan’s Magazine. vol. 12, 1865, pp. 157-166. Disponível em: https://galton.org/essays/1860-1869/galton-1865-hereditary-talent.pdf

[3] GALTON, Francis. Inquires into human faculty and it development. Edição de 1907, reimpressão de 1911, p. 11. Apud PELÁEZ, Raquel Alvares. Herencia y eugenesia. Madrid: Alianza, 1988, p. 11. Conferir também, a respeito, PICHOT, André. La société pure: de Darwin à Hitler. Paris: Flammarion, 2000, p. 255.

[4] SALLEBY, Caleb Williams. Parenthood and Race Culture. Londres: Cassell and Company, 1909. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/42913/42913-h/42913-h.htm

[5] FÜRST, Henderson. Biopopulismo e a apropriação política de narrativas científicas. In: CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; GOUVÊA, Carina Barbos; LAMENHA, Bruno (coords.) Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 141 e ss.

[6] Childhood Vaccination Rates Were Falling Even Before the Rise of R.F.K. Jr. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2025/01/13/upshot/vaccination-rates.html

[7] CORN, David. How RFK Jr. Falsely Denied His Connection to a Deadly Measles Outbreak in Samoa. Disponível em: https://www.motherjones.com/politics/2024/07/how-rfk-jr-falsely-denied-his-connection-to-a-deadly-measles-outbreak-in-samoa/

[8] https://www.estadao.com.br/saude/superbebe-protocolo-para-turbinar-qi-de-bebes-na-gestacao-viraliza-e-gera-criticas-de-medicos/?srsltid=AfmBOorkfJ1o9O7MzXUOp0VOH38yTvVG0tiSiB20tnwJ3uiw9-BIDhoK