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O biopoder, como ele é

E o que isso tem a ver com tudo.
O biopoder, como ele é
  • É tudo sobre corpo

Os verões franceses na década de 1970 foram marcados por uma série de cursos realizados no prestigioso Collège de France por um acadêmico singular, que não tinha problemas em contradizer o que já tinha escrito, dono de uma metodologia peculiar de pesquisa e escrita, e que era facilmente visto em boulevares de Maio de 68 à rebeliões de penitenciárias. Michel Foucault consolidou um pensamento único e se tornou um importante referencial teórico mundo afora – apenas para dar um exemplo, Sérgio Arouca escreveu sua tese de doutorado “O Dilema Preventista” usando Foucault como referencial teórico (há quem diga que não podia citar Marx à época por causa da ditadura, então fez uma leitura muito única de Foucault que talvez o próprio Foucault fosse gostar – e se você quiser ler, está gratuito pela Fiocruz aqui).

Foucault se interessava por quem a sociedade identificava como um problema "à época": louco, homossexual ou preso. As aspas são porque o tempo passa, mas nem tudo passa.

No verão de 1975-76, Foucault deu o curso “Em defesa da sociedade”, e veio à tona duas palavras que marcariam uma nova forma de pensar o mundo: Biopolítica e Biopoder. O corpo humano torna-se um espaço político, juntamente com o espaço social. A soberania não se dá apenas com a afirmação da localização geográfica do Estado ao qual se governa, mas também com a interferência nos corpos que o habitam, em como se relacionam com o meio e uns com os outros, com o modo de compreender e viver este corpo. Trata-se de um poder sobre o corpo e a vida, uma percepção que ele já tinha esboçado em “Vigiar e Punir” (de 1975 também), ao descrever a docilidade dos corpos.

  • Tá, mas isso não é notícia, por que está no Boletim de hoje?

Porque, mais que nunca, as notícias em bioética estão se tornando uma grande galeria de manifestações possíveis de biopoder, bem como a sua construção nas lutas da biopolítica.

  • Eleições e a biopolítica

Em 1999, Trump disse que era a favor do aborto. Em 2016, pré-candidato, disse que era contra. Em 2022, quando sua indicação à Suprema Corte fez com que se mudasse o precedente que autorizava permitia o aborto em todos os Estados, Trump avaliou que isso foi ruim para o partido, porque o desempenho nas eleições de meio-mandato tinha sido ruim. Em 2024, Trump possui um discurso para o que a plateia republicana ou indecisa queira ouvir. Após Kamala alertar para o retrocesso doo projeto de governo de Trump, ele prontamente escreveu que seu governo “será ótimo para as mulheres e seus direitos reprodutivos”. Se, em 2023, havia condenado a permissão de aborto até as 6 semanas gestacionais na Flórida, na semana passada disse ao NBC News que as mulheres da Flórida precisavam de mais tempo do que apenas 6 semanas para pensar. 

E é assim que a biopolítica se manifesta. Não se trata de proteger a vida, mas de moldar como se pode viver da forma que melhor atenda a interesses de poder.

  • E quando a vida começa?

Uma das questões mais perguntadas a bioeticistas é quando a vida começa. Esse editor já contou mais de 20 teorias com distintos marcos temporais para responder à pergunta – é como um buffet, escolha a que melhor se adeque à necessidade.

Também o biopoder se revela aqui. Após a Suprema Corte do Alabama decidir que embriões congelados possuem os mesmos direitos que crianças nascidas, inviabilizando a técnica de reprodução humana assistida, o debate do início da vida se reacendeu, contando com o apoio de importante setor evangélico nos EUA, e se tornando pauta de projetos de lei nos Estados para impedir o procedimento, que teve o apoio do candidato a Vice de Trump – o que fez a versão soft de Trump também se manifestar publicamente a favor da FIV para não perder mais votos.

A posição de alguém sobre o domínio da vida pode dar ou tirar votos (afirmação válida para eleições presidenciais ou de conselhos profissionais). E isso tem tudo a ver sobre biopoder, e não com proteção da vida, de vítimas ou de cuidados com quem mais precisa deles.

  • Falando em FIV

O TJ-BA obrigou que a Unimed faça o congelamento de óvulos de uma mulher com endometriose. A relatora fez uma distinção entre o entendimento do Tema 1067 do STJ, que reconhece o não dever de planos de saúde custearem a FIV, com o direito à preservação da fertilidade.

  • Um novo paradigma na saúde?

Na semana passada, o Ministro Gilmar Mendes suspendeu todas as ações que envolviam o fornecimento de medicamento para distrofia muscular de Duchenne, mas autorizou que, aquelas que estejam próximas do fim da janela de eficácia do medicamento, tenham acesso.

O motivo é que o Ministro estabeleceu que a indústria farmacêutica fabricante e o SUS negociem adequadamente os valores para compatibilizar tanto orçamento e reserva do possível com o direito à saúde.

Esse boletim vislumbra uma nova fase de atuação judicial no direito à saúde, valendo-se de proceduralização judicial, para resolver questões complexas da forma adequada.

  • Por falar em fornecimento de medicamento

Começou ontem, 6.9, o julgamento no plenário virtual do STF do tema 6, se é dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo que não esteja incorporado pelo SUS a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo. Se não houver pedido de destaque, teremos notícias do resultado no próximo dia 13.9. Aguardemos pelo próximo boletim.

  • Mudança no atestado médico

O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 2.382/2024, que cria e estabelece a plataforma “Atesta CFM” como sistema oficial e obrigatório para que médicos emitam atestados médicos no Brasil. Ou seja, todo e qualquer atestado médico deverá ser emitido por esta plataforma.

A medida é uma forma de evitar fraudes e a invasão de telemedicina de atestados e renovação de receitas que surgiu no exterior voltado ao público brasileiro.

Todavia, com apenas 60 dias para adequar todos os sistemas virtuais existentes no Brasil para emissão de documentos médicos – em especial o SUS - , e num país continental que tem locais sem qualquer acesso à internet (ou mesmo computador!), exigir que todo atestado médico esteja concentrado numa única plataforma pode implicar em uma série de dificuldades e restrições de direitos de pacientes.

  • Lei vigente, ainda sem eficácia

Mais uma semana se vai sem regulação da nova Lei de Pesquisa Clínica – e, até o fechamento deste Boletim, o Congresso ainda não apreciou os vetos, tampouco existe qualquer regulação aos mais de 30 pontos que a exigem.


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O que mais rolou?
  • CFF autoriza que farmacêuticos prescrevam contraceptivos hormonais, cf. Resolução CFF 12/2024.
  • o CREMESP publicou a Resolução 377/2024 que regulamenta as atividades de anatomia patológica e citopatologia - porque, claro, trata-se de matéria que não é de competência federal e há interesse específico apenas no Estado de São Paulo - obs.: contém ironia.
  • Alimentos artesanais agora possuem uma proteção especial da lei, cf. Lei 14.963/2024.

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Vale a pena ler também

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Por fim
  • Se você abrir esse Boletim no seu navegador, vai poder ouvi-lo com a trilha sonora do grande Sérgio Mendes, que foi fazer a maior bossa no céu.
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É isso. #sabadou e #feriadou a independência do Brasil.

Este Boletim foi escrito ouvindo Sérgio Mendes.