Até aqui de fumaça

- Respire!
O cenário é cinza. O Brasil concentra 71.9% de todas as queimadas na América do Sul, o número de focos de queimadas em 2024 é 108% maior do que o mesmo período de 2024, e apenas considerando o primeiro semestre, representa um aumento de 92% de hectares queimados em relação a 2023. Na semana passada, respirar em São Paulo equivalia a fumar 5 cigarros por dia, crianças desmaiando em escola por causa da fumaça – e diretores sendo afastados por terem suspendido aulas em proteção das crianças.
É um cenário de caos climático.
- Respirar é um direito
Em 2020, a gestão ambiental brasileira foi questionada por várias ADPFs perante o STF (as ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF), todas cobrando a elaboração de um plano governamental para a proteção da Amazônia e do Pantanal por conta dos incêndios que ocorriam à época nos referidos biomas. As ações foram julgadas parcialmente procedentes em 20/3/2024, e determinou ao governo federal, entre outras medidas, o dever de apresentar um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”, e também um “plano de recuperação da capacidade operacional do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais – Prevfogo”.
Diante do novo cenário de queimadas, o Ministro Flávio Dino estabeleceu uma audiência de conciliação para estabelecer medidas de enfrentamento ao estado de emergência climática decorrente das queimadas de 2024.
- Respirar também é saúde
Como as medidas estão relacionadas unicamente ao controle das queimadas, sem considerar medidas relacionadas à saúde, a Sociedade Brasileira de Bioética informou ao STF alguns dos diversos efeitos que uma situação de emergência climática como a atual causam à saúde humana a curto, médio e longo prazo.
A SBB também pediu ao STF que determinasse que governos a realização de um plano específico para a atuação sanitária em situação de emergência climática, tal como feito pela Alemanha e a Colômbia anteriormente, entendendo que se trata de uma medida de Estado, e não de governo. A petição pode ser lida aqui.
O direito à saúde em mudança climática já foi objeto de análise desse Bioética Sem Fronteiras. Leia aqui.
- Um novo paradigma no fornecimento
No boletim anterior falávamos do surgimento de um novo paradigma no fornecimento de medicamentos. E isso se consolida com a publicação da Súmula Vinculante n.º 60 do STF que diz: “O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243).”.
A pactuação feita entre entes federados e a tese estabelecida pelo STF no tema 1.234 pretendem estabelecer maior racionalidade na judicialização para fornecimentos de medicamentos. Inaugura-se, assim, um novo capítulo na história da judicialização da saúde, que já teve muitos outros ao longo dos 30 anos do SUS. E é relevante que isso ocorra, pois a judicialização desenfreada chegou a consumir 10% do orçamento destinado à saúde de metade dos municípios brasileiros e, em alguns casos, chegou a consumir 100%.
Embora seja preciso observar o novo paradigma na prática, algumas coisas chamam a atenção. Por exemplo, foi pactuado que tratamentos cujo valor seja maior que 210 salários mínimos deverão ser propostos contra a União na Justiça Federal. Não é difícil que um tratamento custe mais de R$ 296.520,00. Ocorre que, com essa mudança de competência, pacientes pobres que dependam da Defensoria Pública, não poderão mais se socorrer da defensoria pública estadual, mas sim a DPU – e a DPU está presente em menos de 30% dos municípios brasileiros que possuem uma subseção judiciária. Ou seja, não basta restringir o fornecimento, há uma restrição ao próprio direito a ter direitos, com maior vulnerabilização dos vulneráveis.
Também se observa que será mais difícil cumprir alguns requisitos. Já é difícil obter um bom relatório médico com todos os detalhes que o Poder Judiciário exige, e agora ficará ainda mais.
Um ponto que chama a atenção é o compartilhamento das atribuições da Anvisa com pacientes – vale ressaltar que a decisão é sobre medicamentos com registro na Anvisa, mas ainda não disponíveis no SUS. A tese estabelecida diz que compete ao paciente a “comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise”. Acontece que essa análise é justamente aquela que é feita pela Anvisa quando registra um medicamento. Ou seja, não basta a Anvisa já ter feito tal análise, o paciente precisará refazê-la. Se é válido que o médico assistente do paciente fundamente sua prescrição em relatório médico com base em evidências científicas, não faz sentido a determinação de que o paciente peticione demonstrando questões relativas ao medicamento cuja análise é da competência da Anvisa e que por ela já foram aceitos.
Há outros pontos, mas deixemos para a doutrina.
Se você quer que este Boletim faça um roteiro do novo passo a passo para pedir medicamento, incluindo como fazer a indicação de evidências científicas com uso de inteligência artificial, indique-o para mais pessoas. Se atingirmos 100 novos leitores até a próxima semana, vamos preparar uma edição exclusiva de como aplicar o novo paradigma.
- Mesmo assim...
No mesmo dia que a CONITEC publica decisão de não incorporar medicamento para osteoporose, o Ministério da Saúde publicou chamamento público para adquirir o medicamento.
- Pode recusar transfusão de sangue?
Ficou para a próxima semana, mas o STF já tem 5 x 0 concordando que pacientes podem recusar transfusão de sangue, e o SUS tem o dever de custear o acesso a tratamentos alternativos, ainda que em outros estados.
O consenso formado até o momento diz respeito a paciente capaz e em condições de decidir. Não há qualquer menção à forma como deve se dar a recusa.
- “Feliz dia de parturiente”!
O STF também formou maioria para estabelecer alteração na DNV (aquele documento que o Hospital emite para o cartório fazer a emissão da certidão de nascimento) para constar algum termo que seja inclusive quanto às pessoas que gestam (como o caso de homens trans). Assim, em vez de “mãe”, ficaria “parturiente”. E em vez de “pai”, usaria “responsável legal”. Mas...
O Ministro Flávio Dino (que não vota, porque seu antecessor já votou) puxou o microfone e propôs: “vou ligar para a senhora minha mãe, que faz aniversário hoje, e dizer ‘Parabéns, minha parturiente’ para ver o que ela acha, e volto aqui com a experiência”. O debate foi proposto antes pelo Ministro Nunes Marques, dizendo que deveria ter documentos inclusivos, com o termo “parturiente”, para quem o desejasse, mas que deveria manter o “mãe”.
Mas e quanto ao termo “responsável legal”? Ele é o melhor para incluir todas as formas de parentalidade? Não soa como se a mãe ou parturiente não seriam responsáveis legais?
A ver como o STF responderá!
- Sei que tá chato, mas seguimos com lei vigente, ainda sem eficácia
Mais uma semana se vai sem regulação da nova Lei de Pesquisa Clínica – e, até o fechamento deste Boletim, o Congresso ainda não apreciou os vetos, tampouco existe qualquer regulação aos mais de 30 pontos que a exigem.
- Se você abrir esse Boletim no seu navegador, vai poder ler ouvindo Breathe(In the Air), de Pink Floyd, que se tornou hino de resistência entre tanta fumaça.
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