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A quinta série que habita em nós

Parece piada, mas não é!
A quinta série que habita em nós
Olá,
Amanhã é aniversário de SP, um feriado tão paulistano que cairá em pleno sábado. São Paulo é uma cidade superlativa. Tudo, intenso, imenso, ao mesmo tempo, o tempo todo.
Foi aqui, numa roda de samba, que a palavra Bioética talvez tenha sido pronunciada pela primeira vez no Brasil (até onde se sabe), na década de 1970. O famoso sambista paulistano Paulo Vanzolini, recém voltado de Harvard, encontrava seu amigo William Saad Hossne e, conversando sobre ética na pesquisa com seres humanos (sim, numa roda de samba), falaram de Bioética pela primeira vez.
Em homenagem ao aniversário de SP, a trilha sonora dessa edição está logo ao final para dar play: João Gilberto cantando "Ronda", clássica composição de Paulo Vanzolini (disponível apenas para quem abrir o Boletim no navegador).
Enquanto isso, a edição da semana está repleta de polêmicas. Espero que goste!
Um abraço, H.
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Multa por ejaculação sem a finalidade de reprodução

É exatamente isso que você leu. Não é sensacionalismo (embora pudesse facilmente ser um post d’O Sensacionalista).

O Senador estadual do Mississipi Bradford Blackmon propôs uma lei proibindo o “descarte de material genético” (eufemismo do senador) sem a intenção de fertilizar um embrião. A multa prevista para os homens que descumprirem a Lei, se aprovada, começa em US$ 1.000,00 e, no caso de reincidência, vai a US$ 10.000,00.

De acordo com o Senador da “Lei da Contracepção Começa na Ereção” (sim, esse é o nome), são muitas as leis aprovadas e projetadas antiabortistas com enfoque apenas na conduta das mulheres e estava na hora de olharem para a conduta masculina. O Mississipi é um dos 12 estados norte-americanos que tem restrição total ou quase total ao aborto.

Se a curiosidade estiver grande, leia o projeto de lei aqui.

A propósito, a Bíblia também tem um precedente nesse sentido. Está em Gênesis 39:9-10, com pena de morte e tudo.

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Dedo-durice como política pública

A história do Projeto de Lei da "Contracepção Começa na Ereção" precisa ser considerada num contexto maior.

Grupos que obtiveram êxito em restringir medicamentos abortivos em seus estados agora estão incentivando que parceiros sexuais masculinos de mulheres que decidiram abortar enviem informações relevantes sobre o modo como obtiveram a medicação para providenciar ações judiciais estratégicas.

A iniciativa se inspirou no Texas, com a organização “Texas Right to Life” fazendo campanha ativa em novembro de 2024 para que homens enviassem informações sobre aborto de suas ex-parceiras. E, pasme, deu certo: em dezembro, o Texas entrou com uma ação judicial inédita contra um médico de Nova York que teria enviado pílulas abortivas para uma mulher no Texas.

Esse é o primeiro processo judicial que questiona as leis de proteção que estados como NY, California e Massachusetts tem para proteger fornecedores de medicamentos abortivos.

De acordo com o Washington Post, a mulher não contou ao parceiro sobre o aborto medicamentoso, mas pediu que a levasse ao hospital. Mais tarde, o sujeito encontrou as pílulas na casa que compartilhavam, e diante da campanha decidiu dedurar sua (ex?) companheira. Pode parecer um caso pontual texano, mas há casos noticiados no Brasil também.

Além da dedoduragem, outros dois processos tramitam no Texas de homens contra ex companheiras que abortaram, alegando haver um direito subjetivo à paternidade, mesmo que a mulher não queira ser mãe. É como se fosse uma gestação por subrrogação, mas com coação da gestante.

Anteriormente, este Boletim noticiou que, após a decisão Dobbs v. Jackson Women’s Health, aquela que superou o caso Roe vs Wade, a National Domestic Violence Hotline divulgou que praticamente dobrou a quantidade de chamadas sobre coerção reprodutiva no primeiro ano.

Há muitas camadas de complexidade aqui. Mas, sobretudo, o surgimento de novas formas de violência às mulheres.


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Não fale sobre isso

Instagram e Facebook bloquearam e ocultaram postagens com informações relacionadas a medicamentos de planejamento familiar, além da suspensão de contas – o que foi confirmado pela Meta ao NY Times.

Isso acontece justamente no momento que a Meta anunciou mudanças radicais nas políticas de liberdade de expressão , afrouxando as restrições de informações veiculadas, o que causou preocupações mundo afora, inclusive no Brasil. Mas, ao que tudo indica, não é bem assim, especialmente quando diz respeito a questões bioéticas – e esse Boletim avisou disso ao falar das tendências para 2025 na Bioética.

A modulação seletiva dos algoritmos para a divulgação de informações é perigosa. Um único caso é significante para demonstrar os riscos: o massacre da minoria rohingya em Mianmar, que ocorreu em 2016-17.

Os rohingyas são habitantes muçulmanos no oeste de Mianmar e, desde 1970, sofrem discriminações e violências da maioria budista. Após um longo período ditatorial, o processo de redemocratização no início dos anos 2010 deu esperanças à minoria de que poderiam viver dias melhores com redução da perseguição. Todavia, o que ocorreu foi um drástico aumento da violência contra a minoria, com a morte de milhares de civis desarmados, estupro de cerca de 60 mil mulheres rohingyas, bem como a expulsão de cerca de 730 mil rohingyas do país, com o ódio fomentado por fake news e propaganda contrária aos rohingyas disseminadas pelo Facebook.

Ainda que as postagens fossem criadas por pessoas identificáveis, foram os algoritmos sem checagem de fatos e tendenciosos a promover conteúdo de ódio que estimularam a circulação de tais informações. Anistia Internacional, por exemplo, descobriu que os algoritmos do Facebook proativamente amplificaram e promoveram conteúdos na plataforma que “incitavam a violência, o ódio e a discriminação contra os rohingyas”, e a ONU concluiu que o Facebook desempenhou papel determinante na campanha de limpeza étnica contra os rohingyas.


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O pão de cada dia nos dai hoje

Mais de ¼ dos domicílios no Brasil estão em situação de insegurança alimentar. Ou seja, não sabem se irão conseguir comida suficiente para matar a fome, ou já apresentam desnutrição em graus diferente ou, ainda, estão severamente afetados pela fome e desnutrição. "A fome", escreveu Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo, "é a escravidão de hoje em dia".

Além disso, a alimentação é o setor econômico com alta inflação – atingiu 8% em 2024.

Diante deste quadro, o Governo começou a debater mecanismos de redução da inflação na alimentação, em especial dos alimentos que compõem a cesta básica. Medidas de intervenção no mercado já foram descartadas. Medidas de subsídios, também foram rejeitadas imediatamentes por Haddad. Mas as medidas apresentadas que ficaram na mesa não soam suficientes, muito menos adequadas.

Uma delas, apresentadas por uma entidade representativa do setor de supermercados, é a de mudar a regulação sanitária dos alimentos, em especial quanto ao prazo de vencimento dos alimentos não perecíveis. Consta que já foi rejeitada a ideia, mas pensar que uma entidade representativa do varejo de alimentos acha razoável vender mais barato alimentos vencidos (e com menor segurança sanitária, portanto) nos faz refletir sobre a biopolítica da alimentação.

Aliás, 800 toneladas de carne que ficaram submersas nas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul foram vendidas para consumo humano por uma distribuidora no interior do RJ.

No Brasil, a abordagem da fome e da alimentação pela Bioética ainda se encontra em seus estágios iniciais de desenvolvimento e compreensão, o que fica evidente ao se observar a baixa publicação existente nessa intersecção temática, bem como a inexistência do tema em manuais ou textos de revisão. Fica a sugestão para jovens pesquisadores!

A propósito, está no prelo o livro “Regulação da indústria de alimentos”, organizado por Anderson Ribeiro, Daniela Guarita Jambor e eu, e logo mais estará disponível para que leitores conheçam mais do direito regulatório de alimentos.

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Banco de dados e pesquisa clínica

Com muito atraso, o Conselho Nacional de Saúde publicou a Res. 738/2024, que trata do uso de bancos de dados para pesquisa científica com seres humanos. Muito embora tenha sido aprovada em 7 de novembro de 2024, apenas dia 22 de janeiro de 2025 é que foi publicada.

A curiosidade é que a Resolução ignora a Lei de Pesquisa Clínica, inclusive em suas considerações preambulares. E, a propósito, os vetos à Lei seguem sem apreciação pelo Congresso Nacional.


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Bolsas e eventos em Bioética

Quem está procurando oportunidades para estudar bioética, o The Hastings Center divulgou que abriu seu programa de Bioética Global, com a possibilidade de jovens pesquisadores desenvolverem estudos por lá em diferentes modalidades. Interessados podem saber mais aqui.

E o Kennedy Institute of Ethics, em Georgetown, divulgou as datas da edição 2025 de seu curso intensivo de bioética: 9 a 11 de junho. Mais informações aqui. É uma oportunidade incrível para encontrar bioeticistas do mundo inteiro, debater temas globais, aprofundar em diversas questões e conhecer novas linhas de pensamento. Recomenda-se fortemente! 


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Frase da semana
“Vamos investigar o legislativo da mesma forma que os vereadores estão investigando os médicos nos serviços de saúde”

(autoria desconhecida, mas só avisar que daremos os créditos).

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Por fim
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É isso. #sextou e bora celebrar mais um aniversário da pauliceia desvaiarada que, claro, tinha que cair no sábado para honrar o bom espírito paulistano.