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A Bioética segundo Jesus Cristo

Este não é um texto religioso
A Bioética segundo Jesus Cristo
  • Uma criança e uma menina

Há 2025 anos, nascia uma criança refugiada num estábulo em Belém. A cena é bastante conhecida, especialmente porque Francisco, o de Assis, representou a cena em 1223 numa manjedoura, com burricos e vacas rodeando para esquentar a criança Jesus naquela noite fria. Francisco e Jesus provavelmente ficariam especialmente felizes ao ver as representações contemporâneas em que cachorros e gatos se acomodam confortavelmente na manjedoura com a criança recém-nascida. Na cena (retratada e vivida), também uma menina de 14 anos (há quem diga 15), Maria. Dois personagens que deixaram mensagens fortes de Bioética e humanismo. Como o aniversário atribuído a Jesus se aproxima, é sobre a mensagem bioética dele que escreveremos hoje.

  • O mais conhecido dos desconhecidos

Dois milênios nos separam de Jesus. Não apenas os anos, mas incontáveis histórias também nos dificultam conhecer uma versão de Jesus que se aproxime da realidade que foi a pessoa para além da divindade.

Artistas insistiram por muito tempo em representa-lo como um europeu com traços gauleses, ignorando uma pessoa nascida na Galileia, de origem semita, falando aramaico, e não inglês ou latim.

Jesus é o mais conhecido dos desconhecidos. Não se sabe sua aparência, e mesmo sobre sua vida há algumas lacunas relevantes ou editadas que deixam espaço à imaginação e à fé.

Há um único texto escrito de Jesus. E foi escrito no chão de terra com o próprio dedo enquanto esperava a deliberação de um grupo de políticos e intelectuais religiosos da época, que queriam matar com requintes de crueldade uma mulher que julgavam pecadora.

Jesus, enquanto escrevia seu único texto, teria perguntado a eles quem dali nunca teria pecado, que esse fosse o primeiro a executar a pena de apedrejamento.

Seu texto nunca foi lido, e o vento já o apagou. Poderia ser um texto típico das redes sociais – que escrevemos com atenção, mas se perdem nos bytes. Poderia ser um mantra que replicaríamos até hoje. Mas nada sabemos desse único texto – Jesus não seria um pesquisador com produtividade Capes.

Também sobre ele não há textos contemporâneos à sua vida. Não há notícias de nenhum censo da época de Augusto que registre seu nascimento – e os romanos eram ótimos burocratas, não deixariam passar, caso houvesse.

O primeiro texto sobre ele é de cerca de 40 anos após sua morte, escrito por Marcos, após a destruição do Templo de Jerusalém, e se pautava em conhecimento de comunidades cristãs que não tinham mais origem judia, pois foi escrito em grego. Aqui já podemos observar como a poderosa mensagem foi sendo apropriada e transmitida de pessoa a pessoa, avançando no tempo e no espaço num momento em que a comunicação não tinha os fluxos de hoje.

Os próximos textos surgirão quase 20 anos depois, na Turquia e na Palestina, com Mateus e Lucas, respectivamente. Embora pudessem ter Marcos como inspiração, trazem muitas histórias que não constam no primeiro texto, o que faz surgir a hipótese de que teriam se valido de uma fonte Q (do alemão, Quelle, fonte): nome atribuído a um conjunto de conhecimentos que pode ter sido organizado ou simplesmente transmitido como tradição oral de geração a geração – e, sempre, cada qual relatando os aspectos que mais lhe tocavam. O último dos textos é do início do séc. II d.C., de João, que se atentou menos à biografia e mais à espiritualidade e amor de Jesus.

Esse é um aspecto singular da mensagem bioética de Jesus. Ela é apropriada e contada de diversas formas, cada qual com sua ênfase que diz mais respeito a si do que a Jesus propriamente. É uma mensagem que respeita a individualidade, que olha o sofrimento, a vulnerabilidade e a diversidade.

E é sobre essa mensagem que falaremos.

  • Antígona de Jesus – a bioética do cuidado

Quatro séculos antes de Jesus nascer, Sófocles escreveu uma peça que se tornou célebre nas aulas introdutórias de Direito: Antígona. Há um choque entre um direito natural de enterrar os entes queridos com o direito posto que determinava o não enterro do pai de Antígona – e o dilema de sua escolha.

Jesus viveu esse conflito, mas de uma forma diretamente relacionada à saúde e cuidado. Era um sábado – e vale lembrar que o povo judaico guarda o sábado, tal como o próprio Criador fez –, e Jesus entrava na Sinagoga quando se deparou com uma pessoa com deficiência. Como o pregador galileu já era conhecido por sua especial conexão com o divino, foi questionado se ele iria fazer algo por aquela pessoa, desrespeitando o sábado, ou se observaria a máxima de respeitar o sábado.

Se Sófocles propôs uma oposição entre direito natural e direito positivado, em Jesus temos uma questão posta pela bioética do cuidado. É mais relevante observar o texto da lei ou contrariá-la para cuidar de alguém?

A história, relatada no evangelho de Mateus, demonstra uma certa ironia de Jesus, que nem sempre é relatada pelos pregadores, mas há um especial humor de Jesus em sua Antígona.

Como se pode imaginar, ele optou pela ética do cuidado e isso fez que muitos ali presentes começassem a debater qual pena deveria ser aplicada a quem desrespeitou o sábado em plena Sinagoga – e as propostas envolviam sempre de castigos físicos à morte. Jesus se retirou dali e, se na Sinagoga, em pleno sábado, optou por cuidar de uma pessoa, ao sair da Sinagoga foi pelas ruas sendo seguido por uma grande multidão – e fez questão de cuidar não só de um, mas de muitos outros. É como se fosse uma forma de replicar e insistir na mensagem: mais importa o cuidado do que a regra.

  • A bioética do acesso ao tratamento

Em uma dessas caminhadas com a multidão, em que Jesus cuidava daqueles que estavam pelo caminho, ele parou de caminhar, olhou ao seu grupo próximo e perguntou quem lhe tinha tocado. Houve alguma perplexidade – havia uma multidão se apinhando ao redor do galileu, como ele poderia falar de uma única pessoa?

Eis que surge uma mulher que sofria de hemorragia há 12 anos. Doze anos sangrando diz muito para a realidade da época, em que a expectativa de vida era de cerca de 30 anos. Não significa apenas que era uma pessoa com uma doença crônica, mas sim uma pessoa impura, nos termos da lei mosaica. Era uma pessoa que gastou todos os seus recursos para se curar e, como não conseguiu a cura, estava marginalizada por ser impura.

Quando ela se esforça num ato de desespero e fé para encostar em Jesus, algo de diferente ocorreu. Não apenas ela foi curada, mas ele percebe e torna isso consciente. Alguém lutou muito para conseguir chegar à fonte de cura e se curou.

O acesso a tratamento é, hoje, um dos principais aspectos do direito à saúde, e também um dos mais complexos. Para além do direito de acesso, envolve custos, esforços pessoais na jornada de cura, marginalização, estigmatização, entre outros problemas.

A mensagem Bioética de Jesus na bioética do cuidado também envolve uma ação consciente de proteger o acesso dos mais vulneráveis aos cuidados de saúde. Uma pessoa marginalizada e pobre conseguiu ter acesso e se curou.

  • A Bioética da saúde emocional

A bioética do cuidado não ficava restrita aos cuidados físicos. Certa vez, quando Jesus estava em Cafarnaum, era tão difícil se aproximar dele que, para levar um paralítico para perto, foi preciso que um grupo de homens carregassem a cama e, não sendo possível sequer chegar perto, fizeram um esforço extra: subiram ao teto e desceram o paciente e a cama pelo teto mesmo.

Jesus, ao ver o esforço do grupo, ofereceu algo que considerava maior: cuidado com a saúde emocional deles – e o fez perdoando os seus pecados, do grupo e do paciente. Isso causou alguma perplexidade, pois esperavam pelo cuidado do corpo.

Eis a lição bioética de Jesus: o cuidado não é apenas da dimensão biológica do ser humano, mas transcende e atinge as outras esferas da existência humana.

Claro que, após isso, Jesus também curou o paralítico com a célebre frase “levanta e anda” – que, aliás, inspirou Emicida a uma bela música homônima.

E era sábado, mas a bioética do cuidado... bom, você já sabe.

Aliás, Jesus não escondia que também sofria. Uma das passagens mais marcantes está quando ele próprio vivencia o luto da morte de um grande amigo, Lázaro. É tão marcante que é o verso mais curto da Bíblia: “E Jesus chorou”.

Jesus deu relevância ao luto, e mesmo que pudesse imediatamente ressuscitar Lazaro, demonstrou respeito ao sentimento da perda de uma pessoa querida. A bioética do cuidado da saúde emocional envolve também o luto.

  • A Bioética anticapacitista

Não é de hoje que pessoas com deficiência são marginalizadas e estigmatizadas das mais diversas formas. Foram consideradas como amaldiçoadas ou marcadas por entidades divinas ou maléficas, mesmo na história recente.

A mensagem bioética de Jesus começou a transformar essa compreensão. Também era sábado (quase parece provocação, mas você já conhece a mensagem) quando Jesus caminhava por Jerusalém e viu um homem cego de nascença que ficava sentado mendigando. Neste momento, perguntaram a Jesus quem teria pecado para aquele homem nascer cego, se ele próprio ou se os seus pais.

Jesus, que já insistia na bioética do cuidado, precisou adaptar e demonstrar uma outra faceta, aquela que combate o capacitismo. Ninguém pecou. Nem a cegueira, nem nenhuma condição humana, decorre de pecado ou maldição, mas é parte da condição humana e precisa ser acolhida e cuidada.

E, ensinando isso, fez uma cura diferente.

Jesus já tinha curado outros cegos apenas com uma palavra: “Vê!”. Neste caso, fez barro com a terra, passou nos olhos do homem e disse ao grupo que o acompanhava que levassem o jovem a um determinado tanque para que lavasse o rosto. O homem não foi curado sozinho, numa única palavra. Foi necessário que um grupo o ajudasse a chegar ao tanque, puxasse a água e lhe desse para que lavasse o rosto.

Era uma forma de ensinar o cuidado, de superar o sentimento de diminuição do outro para ajuda-lo como a si mesmo. Ao ensinar o combate ao capacitismo, Jesus mostrou como a bioética do cuidado envolve amar o próximo como a si mesmo.

  • A Bioética da Fome

A abordagem da fome pela bioética ainda se encontra em seus estágios iniciais, embora a fome grite pelas ruas, pelos livros e seja parte da vida (e da morte) severina. Nos anos 1960, muito tempo depois de Jesus, uma Carolina o homenageava já no nome e no sofrimento de uma vida pobre na favela. Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário “Quarto de Despejo” que a fome é a escravidão contemporânea. E Jesus sabia disso.

Ele se preocupava com as pessoas que o acompanhavam e não tinham como se alimentar, especialmente quando iriam se despedir e voltar às suas realidades. Com essa preocupação, Jesus providenciou comida para milhares de pessoas em ao menos duas ocasiões – algo descrito como a multiplicação dos pães e peixes.

Sua especial preocupação com as crianças e a fome também tem uma razão de ser. A alimentação na infância é primordial para o desenvolvimento cognitivo e pode implicar em severas limitações aos caminhos futuros.

Esse aspecto da mensagem bioética de Jesus me foi apresentada ainda durante o doutorado por meu orientador, um bioeticista que calha de ser padre, o professor Marcio Fabri dos Anjos. Em seu texto “Bioética a partir do Terceiro Mundo” (datado de 1988), ele fala da bioética pensada a partir dos pobres. E é uma mensagem que ele me ensinou e que é relida a partir da bioética ensinada por Jesus, e me calha de pensar toda vez que vejo um puxadinho hermenêutico cheio de princípios: e os pobres? Cabem aqui?

  • A Bioética Cristã

O tempo fez com que a mensagem de Jesus fosse transmitida e apropriada de diversas formas. E isso também ocorreu na bioética. Diversas linhas contemporâneas trazem a mensagem de Jesus recontada de diferentes formas, como a Bioética Cristã, a Bioética Católica, a Bioética Protestante, a Bioética Laica, dentre outras. A complexidade e relevância de todas estas linhas implicam num ensaio que deixarei para outra ocasião. Quem sabe na Páscoa.

Mas, para além da adjetivação (cristã, católica etc.), a bioética que Jesus deixou lançou diversas bases que florescem e frutificam ainda hoje – embora nem sempre com a intensidade que se gostaria. A bioética de Jesus ensinou sobre a humanização da saúde; sobre a ética do cuidado; sobre o pensamento e a postura anticapacitista; sobre a diversidade humana; sobre a preocupação com a vulnerabilidade e que, independentemente da condição humana, há um ser a ser cuidado em sua dimensão física e emocional; e que a pobreza desumaniza, sendo necessário cuidar dos que têm fome e sofrem.

  • Meus votos

Ainda que as celebrações desta época tenham mais a ver com o solstício do que com a provável data do nascimento de Jesus, a relevância e a força de sua mensagem são como a luz que surge após a noite mais longa. E mesmo que você seja ateu ou sua fé seja de matriz não cristã, a mensagem em aramaico daquele semita que viveu há dois milênios chegou até nós por sua capacidade de ser apropriada e vivida de forma única por cada pessoa que a transmitiu.

Com o encerrar do ano, desejo que você possa viver essa mensagem de sua própria forma, tão única quanto você. E que a mensagem também lhe engrandeça pelo cuidado, pelo humanismo e pelo amor. Que possa renovar a esperança na humanidade, na saúde e no telos que nos faz sobreviver desde os tempos mais ancestrais. E, renovando a esperança, que você esteja também renovado para iniciar um ano novo com plenitude para novos sonhos e projetos.

Há muito a viver deste caminho que se faz ao caminhar. Que caminhemos juntos também em 2025. Boas festas.


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